terça-feira, 4 de outubro de 2011

"Há 207 anos nascia Allan Kardec, o pai do espiritismo"


Aos 3 de outubro de 1804, às 19 horas, a casa do magistrado Jean-Baptiste-Antoine Rivail, na cidade de Lyon, rue Sala, 76, ouvia os primeiros vagidos de uma criança destinada a influir poderosamente nos destinos da humanidade.
Naqueles dias estava em uso o calendário da Revolução, no qual os meses tinham outros nomes e começavam com a entrada do Sol nas casas do Zodíaco. Estava-se a 11 devindemiário. O registro civil, feito no dia seguinte, indicava o nascimento supra deDenizard-Hippolyte-Léon Rivail, sendo seus pais o magistrado acima mencionado e sua esposa Jeanne Duhamel; assinaram como testemunhas, a pedido do médico Pierre Radamel, os senhores Syriaque-Frédéric Dittmar e Jean-François Targe. Remata o documento o sr. Mathiou, presidente do Tribunal.
Afirma-se que em linha paterna descende de tradicional família de juristas e, em linha materna, de teólogos ilustres, matemáticos e escritores, alguns dos quais teriam pertencido à Academia de Ciências e à Academia Francesa, pontos culminantes para homens de ciência e para homens de letras. Mas não nos estiremos por este caminho, que a elevação espiritual nem obedece às leis da genética nem às condições sociais e, sobretudo, financeiras, da família. Os grandes gênios não nasceram em berço de ouro; por vezes conheceram a miséria; Sócrates era filho de uma lavadeira e um carpinteiro foi o pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Via de regra, entretanto, a natureza coloca Espíritos de escol em ambiente adequado, que lhes facilite as tarefas que constituem o sentido de sua vida.
Antes, porém, de entrar no estudo do seu ambiente, vejamos a razão de ser do pseudônimoAllan Kardec, que viria apagar o nome de Hippolyte-Léon-Denizard Rivail.
Um dos princípios fundamentais do Espiritismo, na Codificação Kardeciana, é a reencarnação, isto é, o das vidas sucessivas e interdependentes. No início de seu trabalho filosófico, um Espírito revelou ao Codificador que o conhecia de remotas existências, uma das quais passada no mesmo solo da França, onde a sua individualidade tinha revestido a personalidade de um druida, chamado Allan Kardec. Sabe-se a posição social desses sacerdotes, sorteados entre a juventude da nobreza; mas, também, é sabido que os druidas proibiam a construção de templos e a representação figurada dos Deuses ou Espíritos. Porque lhe teria agradado o nome? Porque lembrasse essa fuga às exterioridades e ao culto externo? Por uma como que memória intuitiva do muito de espiritismo contido noDruidismo? Pela sonoridade do nome? Pela intuição da necessidade de subtrair-se ao mal-estar causado aos familiares e companheiros no mundo científico e educacional, onde vivia, com a publicação, sob a responsabilidade de seu nome verdadeiro, de princípios filosóficos fadados a abalar o velho formalismo da religião e da ciência?
Lyon era uma cidade envolta na garoa, que atenua os contornos e espiritualiza as formas, mas onde se agita uma população laboriosa e realista, prática e fria, embora não infensa à beleza que fala aos sentidos, e àquela beleza mais profunda, que as almas eleitas sentem mas não encontram expressão material. Não é difícil imaginar-se a influência, sobre o menino precoce, do meio lionês e da intimidade do lar de um juiz austero, de formação severa, segundo os velhos moldes hoje evanescentes.
Que motivos teriam levado o velho magistrado a mandar o filho estudar na Suíça? Falta de bons colégios na França? Idéias próprias em relação à influência clerical no ensino local? Interesse pelo sistema de Pestalozzi?
Talvez isso. Talvez um pouco de tudo.
O pedagogo suíço Jean-Henri Pestalozzi, versado em línguas, em história e em direito, se havia consagrado à economia rural. A leitura do Emílio, de Rousseau, lhe revelara a vocação; aperfeiçoou as idéias de Rousseau, do ângulo da pedagogia. Seu ideal foi, então, desenvolver, gradualmente, as faculdades humanas e organizar o ensino mútuo. Para tanto dedicou-se à educação das crianças pobres. Ensinou em várias cidades, até que lhe cederam o Castelo de Yverdon. Yverdon é uma cidadezinha do sul do Lago Neuchatel, onde os Duques de Zaehringen possuíam um célebre castelo que data do século XII. Nessa antiga cidade romana de Eburodunum, e em seu castelo, os duques abrigaram a Escola de Pestalozzi durante vinte anos – de 1805 a 1825.
Nesse ambiente de uma pequena cidade fabril, num velho castelo medieval, o menino Rivail fez os estudos básicos que iriam prepará-lo para uma tarefa que basta, por si só, para marcar o século – já chamado século das luzes.

Estudo e trabalho

Pestalozzi estimava o jovem rivail como um filho. Teve-lhe maior intimidade, que o adolescente soube aproveitar a tal ponto que, aos quatorze anos, por vezes substituía o diretor na condução dos cursos. Aprendeu praticamente várias línguas, além do conhecimento clássico do grego e do latim. Com aquela idade diplomou-se professor. Continuando os estudos, fez o seu bacharelado quatro anos mais tarde. Por nos faltarem dados seguros, não diremos, como outros biógrafos, que foi o bacharelado em ciências e letras, posto nos inclinemos pela afirmativa. É que o bacharelado foi instituído na França em 1808, nas faculdades de ciências e letras, como sanção de estudos secundários. Inicialmente, porém, o bacharelando era puramente literário; em 1830 e 1840 sofreu o sistema profundas reformas que não atingiram o nosso estudante: em 1830 já Rivail era médico.
Por outras palavras, não podemos garantir qual o título obtido pelo jovem Rivail ao fazer o seu bachot, como se costuma dizer na gíria estudantil. Sabe-se, entretanto, que o obteve, com ele entrou na escola de medicina, onde se doutorou aos vinte e quatro anos.
Enquanto fazia o curso de medicina o estudante punha em execução a experiência feita junto a Pestalozzi, relativamente ao ensino mútuo.
Com efeito, o acadêmico-professor lecionava Matemática, Astronomia, Química, Retórica, Anatomia Comparada e Fisiologia, além de sua própria língua. Parece que tirou proventos de parte de tais cursos, mas é certo que em parte os ministrou com absoluta gratuidade, consoante os princípios de seu mestre.
Entre os anos de 1824 e 1849 publicou o dr. Rivail, entre outras, as seguintes obras:
      I -  Curso Prático e Teórico de Aritmética (2 volumes, segundo o método Pestalozzi);
     II -  Plano para o melhoramento da Instrução Pública;
   III -  Gramática Clássica da Língua Francesa;
   IV -  Qual o sistema de estudos mais adequado à época?
    V -  Manual dos exames para certificado de capacidade.
   VI -  Soluções racionais de perguntas e problemas de Aritmética e Geometria;
  VII -  Catecismo Gramatical da Língua Francesa;
VIII -  Programa dos Cursos ordinários de Química, Física, Astronomia e Fisiologia;
   IX -  Pontos para os exames na Municipalidade e na Sorbonne;
    X -  Instruções sobre as dificuldades ortográficas.
Na sua folha de serviços à mocidade de seu tempo está a regência das seguintes matérias, em cursos parcialmente gratuitos – repetimo-lo –, onde, de par com os seus conhecimentos enciclopédicos, patenteia-se o esforço em bem servir os seus semelhantes: Matemática, Física, Química, Astronomia, Retórica, Anatomia Comparada, Fisiologia e Língua Francesa. Falava corretamente inglês, alemão, holandês, espanhol e italiano e era grande conhecedor do grego e do latim.

O Codificador

Foi em 1854 que Allan Kardec tomou conhecimento das mesas girantes e falantes, através de uma conversa com o sr. Fortier, seu colega na Sociedade de Magnetistas. Ao ser informado de que, magnetizadas, as mesas podiam mover-se e davam respostas às nossas perguntas, a resposta de Kardec foi de absoluta descrença, desde que a mesa não possuía nervos nem cérebro, nem podia tornar-se sonâmbula.
Pouco depois um outro magnetista, o sr. Carlotti, lhe fez minuciosos relatos de experiência a que assistira, em conseqüência do que pôde ele dispor-se a assistir às primeiras sessões práticas, em maio de 1855, em casa da sra. Roger, em presença do já citado fortier, do sr. Patier e da sra. Plainemaison. Deste último cavalheiro ouviu relatos num tom diferente, frio e grave, cheio de argumentos que se acomodavam aos princípios científicos.
Surgiu daí a possibilidade de assistir a reuniões regulares, em casa da sra. Plainemaison, à rua Grange-Batelière, 18, ainda no mês de maio já referido.
Repetiram-se as sessões, numa das quais conheceu ele a família Baudin, residente à rua Rochechouart. Convidado para as sessões hebdomadárias da família Baudin – é Allan Kardec quem o diz – “aí fiz os primeiros estudos sérios em Espiritismo, mais por observação do que por efeito de revelações”. E prossegue: “A essa nova ciência apliquei, como tinha feito até então, o método experimental; jamais formulei teorias preconcebidas”. E logo mais adiante: “Nesses fenômenos entrevi a chave do tão obscuro e controvertido problema do passado e do futuro e a solução que, durante toda a vida, tinha buscado. Numa palavra, era uma revolução completa nas idéias e nas crenças, sendo, pois, necessário proceder com circunspecção, e não com leviandade, ser positivista em vez de idealista, para não ser arrastado por ilusões”.
Eis a evidenciação do homem de ciência.
Allan Kardec vira nessas manifestações uma prova da existência da alma e de sua sobrevivência ao transe da morte. Mas, também, percebera que cada Espírito possuía um grau de conhecimento e de moralidade, pelo que esse mundo invisível, que nos envolve, oferecia uma gradação infinita. Estudá-los, classificá-los e explicá-los seria uma tarefa hercúlea e Kardec a teria abandonado se não fora a insistência de alguns amigos dedicados, que desde algum tempo se davam àquelas investigações. Entre esses amigos cabe uma referência particular ao sr. Carlotti, já citado; ao editor Didier, médium, e ao seu filho, também médium; ao lexicógrafo Antoine-Léandre Sardou e seu filho, o médico, escritor e dramaturgo Victorien Sardou, também médium, que prestou relevantes serviços à doutrina, no papel de intérprete dos Espíritos que ofereciam minuciosas descrições e belíssimos desenhos de outros planetas, muito embora o dr. Sardou fosse a negação para o desenho; o sr. René Taillandier, membro da Academia de Ciências, e outros. Desde algum tempo esses senhores faziam sessões e possuíam cinqüenta cadernos de comunicações.
O êxito dessa obra – O Livro dos Espíritos –, cujo nome bem exprime a sua origem e sob o qual a sua autoria apenas aparece como “recolhidos e ordenados por Allan Kardec”, o levaram a pensar na propaganda da doutrina. Mas achava-se sozinho para tal empreendimento. Contudo, aconselhado pelos Espíritos em meados de novembro de 1857, a 1º de janeiro de 1858 lança a Revue Spirite, pequena revista de 32 páginas em média, destinada não só à propaganda, mas – e principalmente – à provocação da opinião pública e ao estudo da fenomenologia espírita e à discussão das hipóteses provisórias, até que, bem verificados os fatos, se lhes pudesse dar uma explicação científica e uma posição no quadro geral da filosofia espírita.
Sua casa estava completamente desarrumada, em ablativos de mudança, a sala em desordem, cheia de pacotes que iam sendo transportados quando, ao entregar um pacote da Revista Espírita, o Codificador caiu fulminado, pela ruptura de um aneurisma da aorta, na véspera de sua instalação em novo e definitivo endereço e da inauguração da livraria, isto é, a 31 de março de 1869, quando ele contava 65 anos de idade.
Mesmo assim, a livraria foi inaugurada no dia seguinte. Foi opinião de sua viúva e dos amigos mais íntimos que esse ato representava a execução de sua última vontade.
Foi sepultado no cemitério do Père Lachaise, onde os discípulos e amigos fizeram erigir um modesto mausoléu.
Allan Kardec não deixou descendência. Casara-se em Paris, a 6 de fevereiro de 1832, portanto aos 28 anos de idade, com a Professora Amélie Gabrielle Boudet, nascida a 23 de novembro de 1795, portanto nove anos mais velha do que ele, muito embora não o parecesse. Era de família rica.
Ela continuou a auxiliar os trabalhos da livraria, zelando pelo patrimônio espiritual de seu esposo. Faleceu a 21 de janeiro de 1883, aos oitenta e nove anos de idade.
*
Allan Kardec deixou muita coisa inédita, mas também deixou um plano de trabalho, conforme ficamos sabendo pelo que, posteriormente, se publicou num volume de Obras Póstumas. Nesse volume há uma ligeira biografia do Codificador, que foi publicada naRevista Espírita de maio de 1869 e o célebre discurso proferido pelo astrônomo Camille Flammarion à beira de seu túmulo.
Entretanto a leitura do volume nos deixa a impressão de que muita coisa ficaria ainda desconhecida do público. O próprio título do livro, no plural, nos deixa supor que outros volumes iriam aparecer.
Por que não vieram?
Mistério.
Há alguns anos, antes da segunda grande guerra, ilustre confrade nosso esteve durante alguns anos em Paris e teve oportunidade de manusear muitos originais inéditos, deixados por Kardec, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, chegando mesmo a tomar alguns apontamentos. Acontece, entretanto, que se arrastava no forum parisiense uma velha demanda entre parentes da sra. Amélie Boudet, Viúva de Allan Kardec e a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Queriam aqueles a posse dos escritos inéditos de Allan Kardec.
Como os reclamantes eram confessadamente católicos, não era de esperar que os quisessem publicar. O que é que ambicionavam? Fazer um bom negócio vendendo raridades?
Não se pode afirmá-lo.
O que se sabe é que esse material está desaparecido. Segundo uns, destruído pelos alemães, quando invadiram a França na segunda Grande Guerra; segundo outros, destruído pelos próprios colaterais da Viúva Alan Kardec.
Para a maioria dos Espíritos uma boa parte do trabalho deixado pelo Codificador continua desconhecida: são os doze volumes que encerram a Revista Espírita escrita quase que exclusivamente por ele. Tais volumes são hoje raríssimos.

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